quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A Cabeça do Santo

Romance de estreia da premiada escritora cearense Socorro Acióli produz o encontro do realismo mágico com o sertão.


  Desta vez o tema por aqui  é o livro "A Cabeça do Santo", de Socorro Acióli, vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Infantil em 2013, lido por mim neste mês de janeiro. O primeiro romance da autora, cuja ideia inicial desenvolveu-se durante um curso ministrado por nada menos que Gabriel Garcia Marquez, traz a história de Samuel, garoto nascido em Juazeiro do Norte, que se vê obrigado a empreender viagem até a pequena e moribunda cidade de Candeia, para cumprir uma promessa feita a sua finada mãe. Ali se desenrola o enredo, numa sucessão de fatos que se equilibram entre o absolutamente fantástico e o perfeitamente crível, dentro da realidade mágica  e poética inerente ao sertão nordestino.

A bonita capa amarela traz dentro essa linda capa com imagem do sertão.

 [AQUI PODEM COMEÇAR PEQUENOS SPOILERS!]
  É bem verdade que histórias fantásticas não são exatamente novidade aqui por estas bandas, rendendo livros, filmes e canções incríveis desde sempre, mas a autora consegue conciliar com habilidade o estilo que a influencia - tem tintas nítidas de Macondo, além de umas boas pitadas de Mia Couto -  e a tradição nordestina que possui de berço e busca replicar.
  A leitura é fácil e fluida, com bons diálogos, de uma coloquialidade e regionalismo autêntico sem ser caricato, fazendo os capítulos curtos ficarem pra trás rapidamente. Através das páginas, seguimos Samuel pelo vilarejo adentro, conhecemos seus moradores com ele, e depois do surgimento da cabeça do título, vemos a cidade também como um personagem, trazendo um pouco a Macondo de Gabo à memória, mas sem tirar os pés do Ceará. 
  A história ganha um novo ritmo e rumo após o descobrimento do incrível dom do protagonista, o que por um lado traz um novo interesse para a história, ainda que, por outro, deixe em stand by sua motivação original. Samuel, então, passa a ter uma trajetória de certa forma picaresca, entre boas ações e seus novos negócios. Esse comportamento dual, aliás, está presente em boa parte dos personagens, o que lhes dá alguma verossimilhança, apesar de lhes roubar empatia em alguns momentos.
  Os cenários e situações são bem descritos sem se alongarem demais, mantendo a narrativa sempre em movimento. Um dos locais que surgem no livro incidentalmente, em flash back, me agradou demais quando apareceu, mas esse eu vou citar para não perder o encanto e manter a surpresa!
  A impressão que permeia todo o romance - e que, suponho, deve ser tanto mais forte conforme a relação do leitor com o universo ali retratado -, é de que se está lendo um cordel em prosa. Essa sensação se prolonga até os últimos capítulos, que parecem saídos de um folheto de cordel (além de evocarem bastante alguns motivos costumeiros nos filmes de Karin Ainouz, mas isso já é outra história!). O desfecho da história, entretanto, parece carecer de algumas páginas a mais. Ainda que todas as pontas soltas ao redor de Samuel sejam resolvidas, o universo expandido no desenrolar do enredo talvez merecesse estar um pouco menos desfocado na última parte.
  Terminado o livro, mais fantástico ainda foi saber depois que a tal da cabeça existe de verdade, e fica na cidade cearense de Caridade! Pesquisar sobre o santo sem cabeça no sertão do Ceará me valeu como um bonus track do livro: além de descobrir essa história incrível, dá pra refletir bastante sobre o processo de criação da autora a partir da inspiração inusitada.

A inusitada cabeça, em Caridade. (imagem: TaperuabaNotícias)
  Lançado no início de 2014 e já publicado no exterior, o livro é daqueles que dá pena de não ter lido antes e fica recomendado para todos, mas especialmente para quem se diverte e se emociona com as peripécias que são capazes de se desenrolar no sertão nordestino, um dos lugares mais bonitos e poéticos que já vi.


______________________________________________________________________________________
ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 170 páginas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário